28 Março 2022
Por quatro semanas o Vaticano tem se oferecido para mediar entre Rússia e Ucrânia e, por quatro semanas, tais aberturas têm sido ignoradas pela Rússia.
Quando a guerra da Rússia contra a Ucrânia explodiu, o Papa Francisco tem escalado progressivamente sua retórica contra a invasão, condenando isso como uma “agressão armada inaceitável”, embora recuse nomear diretamente o presidente Vladimir Putin ou a Rússia como agressores.
A reportagem é de Christopher White, publicada por National Catholic Reporter, 24-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A trilha na corda-bamba diplomática tem sido defendida como consistente com a neutralidade de longa-data do Vaticano, necessária para proteger católicos tanto na Ucrânia quanto na Rússia e como um esforço para preserva qualquer possível papel que a Santa Sé pudesse exercer na intermediação de um acordo de paz.
Outros, incluindo aqueles geralmente simpáticos a Francisco, tem criticado a abordagem como uma falha do uso da voz papal de longo-alcance para condenar diretamente Putin e prevenir mais agressões, também cauteloso nos esforços para avançar as relações ecumênicas com a Igreja Ortodoxa Russa. Críticas tem também expresso ceticismo sobre a possibilidade de o Vaticano atualmente estar apto a exercer um papal na negociação de um cessar-fogo.
O corpo diplomático do Vaticano é o mais antigo do mundo, com uma reputação de abordagens notoriamente discretas e calculadas para o engajamento geopolítico.
Francisco agora enfrenta um dos maiores desafios internacionais de seu papado de quase uma década, e as tensões sobre a abordagem do Vaticano à Ucrânia e à Rússia revelam a complexa teia de políticas intraeclesiais e a influência do elenco global de atoresque elaboram e compõem o papel da Santa Sé no cenário mundial.
À medida que a religião encontra a realpolitik, o que está em jogo são as esperanças da Igreja Católica de maior unidade com outras confissões cristãs, o desejo de proteger a identidade das congregações católicas locais e o tremendo desafio de superar as antigas suspeitas russas do catolicismo romano.
Para entender o momento atual, segundo Victor Gaetan, autor de “God's Diplomats: Pope Francis, Vatican Diplomacy, and America's Armageddon” (“Diplomatas de Deus: Papa Francisco, Diplomacia Vaticana e o Armageddon da América”, em tradução livre), é preciso retornar ao papado do Papa Bento XVI.
Bento XVI, eleito em 2005, e o Patriarca Ortodoxo Russo Kirill, eleito em 2009, são teólogos respeitados de suas próprias tradições e ambos concordaram com a necessidade de lutar contra as marés crescentes do relativismo moral no Ocidente.
Logo depois, em 2010, o Vaticano e a Rússia trocaram embaixadores com pleno reconhecimento diplomático, pela primeira vez em quase um século.
“Este é o período em que a relação entre a Santa Sé e a Rússia, e a Santa Sé e Kirill, começou a florescer”, disse Gaetan ao NCR.
Essa relação ajudaria a preparar o caminho para um eventual encontro pessoal em Cuba entre o Papa Francisco e Kirill em 2016, o primeiro encontro de um pontífice católico romano e o patriarca ortodoxo russo.
Durante esse período, de 2009 a 2012, observou Gaetan, um diplomata do Vaticano nascido na Lituânia, o então monsenhor Visvaldas Kulbokas estava alocado na embaixada do Vaticano em Moscou, proporcionando-lhe um assento na primeira fila para as complicadas realidades das relações Rússia-Vaticano.
De 2012 a 2020, Kulbokas trabalhou na Secretaria de Estado do Vaticano, onde atuou como tradutor de encontros entre o papa e Putin e, segundo Gaetan, fez parte da “pequena equipe” que preparou o encontro altamente sensível entre Francisco e Kirill em 2016, onde voltaria a atuar como tradutor.
Em junho de 2021, Kulbokas recebeu uma nova missão: servir como embaixador do Vaticano na Ucrânia – um país de cerca de 44 milhões de habitantes, com cerca de 5 milhões de católicos.
De acordo com Gaetan, a vibrante comunidade católica, principalmente no oeste da Ucrânia, tinha uma relação tensa com seus vizinhos ortodoxos no leste e estava ansiosa por relações mais estreitas com o Ocidente e a União Europeia, especialmente após a anexação ilegal da Crimeia pela Rússia em 2014.
Coube a Kulbokas navegar por essas divisões.
Tamara Grdzelidze, que serviu como embaixadora da Geórgia no Vaticano de 2014 a 2018, disse ao NCR que, quando chegou a Roma para assumir suas funções, foi logo após a anexação da Crimeia.
Baseando-se em sua própria experiência do ataque militar da Rússia à Geórgia em 2008, ela advertiu seus colegas embaixadores e funcionários do Vaticano a acordarem para a ameaça da Rússia. Em um evento, ela se lembra de falar especificamente com ucranianos e alertar que “o que eles fizeram em 2008 na Geórgia, será o mesmo se o Ocidente não o reconhecer adequadamente”.
Ulla Gudmundson, embaixadora da Suécia no Vaticano de 2008 a 2013, disse ao NCR que lembrou que os representantes do Báltico no Vaticano ficaram chateados quando a Santa Sé se referiu ao conflito entre ucranianos e separatistas russos no leste da Ucrânia como uma “guerra civil”.
“Isso estava falsificando a realidade para eles”, disse Gudmundson.
Em 2021, o secretário de Estado, o cardeal italiano Pietro Parolin, viajou para Vilnius, Lituânia, com o objetivo principal de ordenar Kulbokas como arcebispo. A Ucrânia é um país, disse Parolin na missa de ordenação, que “experimenta conflitos difíceis de superar totalmente”.
Os católicos de rito oriental da Ucrânia são liderados pelo arcebispo Sviatoslav Shevchuk, que conhece Francisco desde que Shevchuk foi enviado a Buenos Aires, Argentina, em 2009, como chefe da comunidade da diáspora dos greco-católicos ucranianos.
Desde sua eleição em 2011 como chefe da Igreja Greco-Católica Ucraniana, Shevchuk não tem vergonha de suas preocupações com a Rússia, alertando repetidamente que a Rússia buscava um retorno a uma era de governo no estilo soviético, o que teria graves implicações para o país e a Igreja Greco-Católica Ucraniana.
Durante este tempo, o Vaticano, de acordo com Gaetan, contou com Kulbokas para ajudar nas relações com os ortodoxos, a fim de evitar uma “guerra fria religiosa”.
No entanto, George Demacopoulos, co-diretor do Centro de Estudos Cristãos Ortodoxos da Universidade Fordham, disse ao NCR que questionou a sinceridade do interesse da Igreja Ortodoxa Russa nas relações ecumênicas.
“Kirill posicionou a Igreja Ortodoxa Russa como a única defensora dos valores tradicionais em todo o mundo”, disse ele. “Que esperança há para as relações ecumênicas se com cada palavra, se sugere que lá não existem valores ocidentais e que alguém que acredita na democracia liberal, proteção dos direitos das minorias e sociedades pluralistas é satânico?”.
“Isso não vai lhe render nenhum amigo ecumênico”, disse ele.
Além do desejo de Francisco de reconciliação entre as duas igrejas, Demacopoulos disse que, em sua estimativa, uma razão potencial para que o Vaticano e a Igreja Ortodoxa Russa, que é a maior das igrejas ortodoxas orientais, tenham encontrado uma aliança devido a certas guerras culturais, particularmente quando se trata de oposição ao casamento gay e à ordenação de mulheres.
“A aliança do Kremlin com Kirill tem sido fundamental na instrumentalização de princípios cristãos seletivos para ganho político”, disse ele. “Posso imaginar que uma das razões pelas quais o Vaticano (até Putin realmente mostrar a sua mão) ter defendido parte da retórica que o Kirill usa é precisamente porque eles próprios estão alinhados com alguns dos valores tradicionais”.
Em Roma, as tensões, às vezes reais e às vezes percebidas, entre a necessidade de unidade entre os crentes religiosos e a preservação de identidades fortes entre as igrejas locais se manifestaram por meio de dois escritórios do Vaticano além da Secretaria de Estado do Vaticano: a Congregação para Igrejas Orientais, chefiada pelo cardeal argentino Leonardo Sandri e o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, liderado pelo cardeal suíço Kurt Koch.
“Você poderia dizer que eles oferecem duas perspectivas diferentes das mesmas terras”, disse Gaetan.
Koch priorizou as relações com os ortodoxos russos e esteve intimamente envolvido na reunião do papa em 2016 com Kirill. Pouco antes da eclosão da guerra, Koch e outros estavam se preparando para um segundo encontro entre Francisco e Kirill que deveria ocorrer no segundo semestre de 2022, uma possibilidade quase agora oficialmente esmagada pela guerra e pela contínua defesa de Kirill. Quando Francisco, em 16 de março, se encontrou por videoconferência com Kirill e rejeitou sua visão da invasão russa por motivos religiosos, era Koch quem estava ao seu lado.
Sandri, que é conhecido por ter relações estreitas com Francisco por causa de sua pátria compartilhada, convocou uma grande cúpula do Vaticano de líderes da Igreja Oriental em Roma na véspera da guerra em fevereiro. Em uma audiência com Francisco no final da conferência, o papa reconheceu os “ventos ameaçadores” de conflito que confrontaram tanto os países quanto as igrejas locais.
O arcebispo-metropolitano Borys Gudziak, da Arquieparquia Católica Ucraniana da Filadélfia, disse ao NCR em fevereiro que durante aquela reunião com o papa, ele discutiu diretamente a necessidade de a Santa Sé falar com força sobre as ameaças à Ucrânia.
Desde a invasão, tanto Shevchuk quanto Kulbokas permaneceram em Kiev, com Shevchuk divulgando mensagens de vídeo diárias pedindo o fim da agressão russa e Kulbokas celebrando missas diárias na cozinha da nunciatura para evitar o bombardeio. Durante seu Angelus de domingo de 20 de março, Francisco elogiou especificamente Kulbokas por permanecer em Kiev e estar presente com aqueles que sofrem com a guerra.
Embora Kulbokas tenha sido cauteloso e limitado em suas declarações públicas, em uma entrevista recente ao site católico Crux, ele defendeu a abordagem da Santa Sé nesta crise atual.
“Quando ouvimos o Santo Padre falar sobre a guerra, não há neutralidade: ele a condena com a palavra mais forte, ressaltando que toda guerra é uma invenção do diabo, é uma obra satânica”, disse Kulbokas.
A ex-embaixadora Gudmundson, no entanto, disse ao NCR que “quando os direitos humanos, o respeito às vidas humanas, etc. do mundo se o papa não mencionar a Rússia como agressora, se houver uma pequena chance de que ele possa de alguma forma trabalhar em Kirill”.
A ex-embaixadora Grdzelidze disse que também “aprecia a abordagem do Vaticano de nunca mencionar partidos específicos”, mas acrescentou que essa postura permite que o partido ou os partidos culpados manipulem a posição do Vaticano.
“Negociações ocultas não funcionam com a Rússia. A política subjacente de sua diplomacia está mentindo”, advertiu ela. “A diplomacia do Vaticano trabalha com países civilizados, mas não com Putin. Eles deveriam falar diretamente com a Rússia e dar nomes às coisas, mas não o fazem”.
Tanto Francisco quanto Parolin têm esperança de que a neutralidade do Vaticano permita que ele salve mais vidas e esteja disponível para servir como pacificador, se possível. O presidente ucraniano, Volodymir Zelensky, expressou abertura a essa ideia no passado, mas a Rússia não demonstrou nenhum interesse.
Grdzelidze, que também é teólogo ortodoxo e serviu por 13 anos no Conselho Mundial de Igrejas em Genebra, disse. “Kirill está 100% por trás da abordagem de Putin”.
O teólogo ortodoxo Demacopoulos concordou.
“O papa está genuinamente tentando fazer a coisa certa e alcançar uma Igreja que ele respeita e defende a paz”, disse ele, “enquanto a Igreja Ortodoxa Russa institucional está simplesmente se aproveitando dele para seu próprio oportunismo, os propósitos da narrativa do Kremlin”.
“Minha própria opinião é nomear o agressor”, disse ele. “Se você realmente vai ser o defensor dos oprimidos, então pode ser construtivo nomear o opressor”.
Mas em uma entrevista recente ao jornal católico britânico The Tablet, o ex-núncio do Vaticano na Ucrânia, o arcebispo Claudio Gugerotti, insistiu: “O presidente Putin escuta o papa”.
Em 1978, o Vaticano interveio em uma negociação de paz entre Argentina e Chile em um conflito sobre o Canal de Beagle, evitando com sucesso um conflito armado, em parte porque o Vaticano tinha uma capacidade única de influenciar os dois países sul-americanos profundamente católicos.
Michael Kimmage, que atuou na equipe de planejamento de políticas do Departamento de Estado dos EUA de 2014 a 2016, onde foi responsável pela pasta da Rússia e da Ucrânia, disse que, em sua opinião, era “absolutamente impossível” que o Vaticano intermediasse um acordo de paz na guerra atual.
Existe uma “narrativa à moda antiga”, disse Kimmage ao NCR, de que a Igreja Católica é um “inimigo tradicional” da Rússia. Este é um “panorama russo de longa data”, disse ele, que torna a geopolítica do momento muito difícil para a Santa Sé navegar.
Sua avaliação foi compartilhada por vários outros importantes especialistas regionais que alertam que o controle de Putin sobre a Igreja Ortodoxa Russa limita severamente qualquer papel que o Vaticano possa desempenhar.
Em vez disso, Kimmage, que é presidente do departamento de história da Universidade Católica da América, disse que o papel da Santa Sé deveria ser “falar com a consciência de outros líderes europeus”.
Nas últimas semanas, o papa enviou dois cardeais emissários à Ucrânia para expressar sua proximidade com aqueles que fogem da violência e falou repetidamente por telefone com o presidente da Ucrânia e líderes católicos. Ao mesmo tempo, Zelensky e o prefeito de Kiev apelaram diretamente a Francisco, pedindo-lhe para visitar a capital ucraniana, dizendo que sua presença física no país devastado pela guerra pode ser uma de suas últimas oportunidades para trazer a paz.
Para Kimmage, a “administração moral” e a vasta rede da Igreja são necessárias para responder às crises humanitárias, que, segundo ele, “são uma legião e ainda estão por vir” e para “ajudar a unir a sociedade ucraniana” após a guerra.
Quando esse momento chegará – e o que Francisco e o Vaticano dirão ou farão nesse meio tempo – ainda não se sabe.
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Os bastidores da estratégia do Vaticano na Guerra Rússia-Ucrânia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU